"eu defenderei até a morte o novo por causa do antigo e até a vida o antigo por causa do novo.
O antigo que já foi novo é tão novo como o mais novo."
Augusto de Campos (Verso, reverso, controverso)

domingo, 19 de julho de 2020

Conversas do Sertão I

Como se mata uma onça

Dom Geraldo de Proença Signaud S.V.D.

Nossa perua Willys corria a bom correr pela estrada de Maringá a Guaíra. Passamos Jussara, então uma clareira na mata virgem, fomos pousar no Cruzeiro do Oeste. A cidade era um formigueiro de pioneiros vestidos de bombachas amplas e calçados de botas de sanfona, que iam a meia canela. Caminhões de toras se sucediam, levando grossas perobas, alvos paus-marfim, rosados cedros, a caminho de São Paulo.
A nova igreja do Cruzeiro já estava erguida. Construção de madeira, muito bem acabada, surpreendia o visitante por sua amplidão, beleza, clareza e luminosidade. Aproveitamos a tardinha para comprar uns chapéus de palha, mais aptos para as viagens em canoa e as batidas na mata, do que nossos chapéus duros. De madrugada, quando os galos cantaram pela segunda vez, celebramos a santa Missa e nos pusemos na estrada.
Éramos quatro, o motorista, dois seminaristas e eu. Estávamos apreensivos. Tínhamos a nossa frente quase 200 km de estradas desconhecidas, esburacadas e tínhamos que cruzar o Piquiri. Fomos nos informando. Até Umuarama a estrada era boa apesar da chuva. A Companhia Melhoramentos a conservava. E depois? Perguntamos num bar. Um motorista nos informou:
 _ Até Iporã a estrada é mais ou menos. Eu vim de lá ontem.
_ E de lá até o Piquiri?
O homem olhou o carro e perguntou:
_ Está em bom estado?
_ Está em forma.
_ Então é capaz de varar. Mas são 30 km de mato, buracos e lama.
_ E a balsa? Dizem que rodou na enchente.
_ Não, a jardineira de Guaíra chegou ontem aqui. A balsa está dando passagem.
_ Menos mal. Vamos com Deus!
Chegamos em Iporã, tivemos de tomar gasolina. O lugarzinho estava nascendo mas o pulo era da floresta virgem ao século XX. Paramos num posto. Atenderam-nos prontamente. Enquanto o motorista se apetrechava  para o último trecho perigoso, dei uma volta para desenferrujar as pernas. O posto de gasolina encontrava-se no cruzamento de duas largas avenidas. A transversal era muito larga. Divisei umas balizas brancas no chão. Dirigi-me a elas. Qual não foi minha surpresa, quando atrás de um galpão vi dois aviõezinhos amarrados ao chão, um Cessna e outro Bonanza. Logo atrás o paredão majestoso da mata virgem, e lá longe, na serra dos Dourados o toldo dos Kaingangs. Do neolítico à era atômica de um salto. Retrata o todo do Brasil.
_ Salve Maria!
_ Salve Maria!
Eram dois marianos que se aproximaram de nós.
_ O Sr. Padre vai ficar conosco?
_ Não, vamos para Guaíra.
_ Será que o Senhor tem uma beiradinha para nós? Temos de ir até lá combinar com o Padre a próxima visita.
_ Vamos juntos, mas com uma condição.
_ Qual é?
_ Se for preciso fazer força para tirar o carro do atoleiro.
_ Não há dúvida, nós arregaçamos as mangas.
E assim ganhamos mais dois companheiros. Compramos pão, velas goiaba, para o caso de ficarmos na estrada, despedimo-nos daqueles bons moços e a perua enfrentou o estradão liso. Depois veio a mata virgem com atoleiros.
_ Desculpem a curiosidade. Os senhores vão ficar em Guaíra?
_ Não, vamos visitar as Sete Quedas e de lá vamos ao Iguaçu, visitar os saltos de Santa Maria.
E a conversa foi rendendo. Falamos das quedas do Paraná Grande, do Iguaçu.
Enquanto isso, observava os novos companheiros. O distintivo na lapela o dizia. Eram Marianos. Ambos mineiros. Um, moço e taciturno, o outro homem de seus 405 anos alegre e conversador. Tinham fundado a Congregação Mariana de Iporã e já tinham 30 homens. Zelavam a capelinha, e se aprontavam para construir a capela nova. Preparavam a vinda do padre, davam catecismo às crianças, preparavam os casamentos e dispunham os doentes para uma morte santa. Depois de conversarmos longamente sobre a vida religiosa, a conversa caiu para o sertão.
_ Sr. Bispo, aqui neste sertão vive cada onça que dá medo.
_ O Sr. Já encontrou alguma?
_ Já, e mais de uma ficou estirada no mato.
_ Como é que caça onça?
O mineiro ficou sério e não respondeu logo. Quando ele começava a falar sua voz tinha um timbre diferente, e era solene.
_ Sr. Bispo, se o Sr, quiser caçar onça eu já lhe ensino como o Sr. faz. Arranja primeiro uma boa carabina de bala... Não confie nestas espingardinhas de matar tico-tico, Flaubert e companhia.
_ Remington serve?
_Tem que ser coisa graúda... Arranje munição garantida, que não falhe. A bicha costuma vir na fumaça. Leve um pau de fogo que não negue. E uns bons cachorros onceiros. Quando os cachorros sentem a onça perto, ficam nervosos, dão sinal. Mecê os solte, e os vá acompanhando devagar. Eles começam a perseguir a onça. Cerca daqui, corre dali, acua acolá, e a onça vai para lá, vem para cá. O Sr, firme como o pau na mão, o dedo no gatilho. Quando mecê ouvir que a cachorrada fica no mesmo lugar,  é sinal que a onça trepou num pau. Vá andando devagarzinho. Quando der com os olhos nela pare. Chame os cachorros e os amarre longe dela.
_ Por que?
_ Porque já lhe digo. Por melhor que seja o caçador, nunca mata a bicha com uma bala só. Ela cai no chão, a desalmada, e a cachorrada vem em cima dela. E ela, zaz, zaz, e cada patada é um cão destripado. Se mecê quer bem a seus cachorros amarre-os longe da bicha.
_ E depois?
_ Mecê procure uma árvore jeitosa e trepe, mecê no toco cá, e ela no toco lá. A cachorrada uiva e late, e a onça continua trepada. mecê não tenha pressa. Trepe na sua árvore de jeito que veja bem a bicha na sua frente.
_ E mete fogo?
_ Não. Espere... espere... Quando ela der as caras, mecê calca o gatilho e remete a carga.
_ Mas onde é que eu aponto?
_ Ali estão elas. Eu já lhe digo. Se mecê quiser fazer um trabalho limpo, ouça bem, tem que atirar, ou no pé do ouvido ou atrás da costela minguinha.
Chegamos ao Piquiri. Tínhamos passado os 30 quilômetros de atoleiro no meio do mato. A perícia do motorista contornara os buracos, vencera os galhardamente os obstáculos. Uma barranca íngreme. No fundo corre majestoso, o rio. Uma balsa precária nos acolhe. Prendendo uma grande chave de madeira ao cabo de aço, o balseiro impele a balsa pelo rio. Vinte minutos e o motor arranca ribanceira acima. Mais uma hora, e um lençol de prata de seis quilómetros se estende diante de nós: o Paraná Grande, antes de se precipitar nas suas Sete Quedas.
_ Salve Maria!
_ Salve Maria!
Os dois homens beijaram-me o anel e se foram. Nunca mais me esqueci da receita de matar onça.

'Quando ela der as caras, é só atirar no pé do ouvido ou por trás da costela minguinha.'



Dom Geraldo de Proença Signaud  S.V. D. 
 Bispo da Diocese de Jacarezinho (1947-1961) 
 Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Diamantina (1961-1980).



Fonte:  Texto publicado no jornal A Estrela Polar (setembro de 1961)




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