Como se mata uma onça
Dom Geraldo de Proença Signaud S.V.D.
Nossa perua Willys corria a
bom correr pela estrada de Maringá a Guaíra. Passamos Jussara,
então uma clareira na mata virgem, fomos pousar no Cruzeiro do Oeste. A
cidade era um formigueiro de pioneiros vestidos de bombachas amplas e calçados
de botas de sanfona, que iam a meia canela. Caminhões de toras se sucediam,
levando grossas perobas, alvos paus-marfim, rosados cedros, a caminho de São
Paulo.
A nova igreja do Cruzeiro já
estava erguida. Construção de madeira, muito bem acabada, surpreendia o
visitante por sua amplidão, beleza, clareza e luminosidade. Aproveitamos a tardinha
para comprar uns chapéus de palha, mais aptos para as viagens em canoa e as
batidas na mata, do que nossos chapéus duros. De madrugada, quando os galos
cantaram pela segunda vez, celebramos a santa Missa e nos pusemos na estrada.
Éramos quatro, o motorista,
dois seminaristas e eu. Estávamos apreensivos. Tínhamos a nossa frente quase 200
km de estradas desconhecidas, esburacadas e tínhamos que cruzar o Piquiri. Fomos
nos informando. Até Umuarama a estrada era boa apesar da chuva. A
Companhia Melhoramentos a conservava. E depois? Perguntamos num bar. Um
motorista nos informou:
_ Até Iporã a estrada é mais ou menos.
Eu vim de lá ontem.
_ E de lá até o Piquiri?
O homem olhou o carro e
perguntou:
_ Está em bom estado?
_ Está em forma.
_ Então é capaz de varar. Mas
são 30 km de mato, buracos e lama.
_ E a balsa? Dizem que rodou
na enchente.
_ Não, a jardineira de Guaíra
chegou ontem aqui. A balsa está dando passagem.
_ Menos mal. Vamos com Deus!
Chegamos em Iporã, tivemos de
tomar gasolina. O lugarzinho estava nascendo mas o pulo era da floresta virgem
ao século XX. Paramos num posto. Atenderam-nos prontamente. Enquanto o motorista
se apetrechava para o último trecho
perigoso, dei uma volta para desenferrujar as pernas. O posto de gasolina encontrava-se
no cruzamento de duas largas avenidas. A transversal era muito larga. Divisei
umas balizas brancas no chão. Dirigi-me a elas. Qual não foi minha surpresa,
quando atrás de um galpão vi dois aviõezinhos amarrados ao chão, um Cessna e
outro Bonanza. Logo atrás o paredão majestoso da mata virgem, e lá longe, na
serra dos Dourados o toldo dos Kaingangs. Do neolítico à era atômica de um
salto. Retrata o todo do Brasil.
_ Salve Maria!
_ Salve Maria!
Eram dois marianos que se
aproximaram de nós.
_ O Sr. Padre vai ficar
conosco?
_ Não, vamos para Guaíra.
_ Será que o Senhor tem uma
beiradinha para nós? Temos de ir até lá combinar com o Padre a próxima visita.
_ Vamos juntos, mas com uma
condição.
_ Qual é?
_ Se for preciso fazer força
para tirar o carro do atoleiro.
_ Não há dúvida, nós
arregaçamos as mangas.
E assim ganhamos mais dois
companheiros. Compramos pão, velas goiaba, para o caso de ficarmos na estrada,
despedimo-nos daqueles bons moços e a perua enfrentou o estradão liso. Depois
veio a mata virgem com atoleiros.
_ Desculpem a curiosidade. Os
senhores vão ficar em Guaíra?
_ Não, vamos visitar as Sete
Quedas e de lá vamos ao Iguaçu, visitar os saltos de Santa Maria.
E a conversa foi rendendo.
Falamos das quedas do Paraná Grande, do Iguaçu.
Enquanto isso, observava os novos
companheiros. O distintivo na lapela o dizia. Eram Marianos. Ambos mineiros.
Um, moço e taciturno, o outro homem de seus 405 anos alegre e conversador.
Tinham fundado a Congregação Mariana de Iporã e já tinham 30 homens. Zelavam
a capelinha, e se aprontavam para construir a capela nova. Preparavam a vinda do
padre, davam catecismo às crianças, preparavam os casamentos e dispunham os
doentes para uma morte santa. Depois de conversarmos longamente sobre a vida
religiosa, a conversa caiu para o sertão.
_ Sr. Bispo, aqui neste sertão
vive cada onça que dá medo.
_ O Sr. Já encontrou alguma?
_ Já, e mais de uma ficou
estirada no mato.
_ Como é que caça onça?
O mineiro ficou sério e não
respondeu logo. Quando ele começava a falar sua voz tinha um timbre diferente,
e era solene.
_ Sr. Bispo, se o Sr, quiser
caçar onça eu já lhe ensino como o Sr. faz. Arranja primeiro uma boa carabina
de bala... Não confie nestas espingardinhas de matar tico-tico, Flaubert e
companhia.
_ Remington serve?
_Tem que ser coisa graúda...
Arranje munição garantida, que não falhe. A bicha costuma vir na fumaça. Leve
um pau de fogo que não negue. E uns bons cachorros onceiros. Quando os
cachorros sentem a onça perto, ficam nervosos, dão sinal. Mecê os solte, e os
vá acompanhando devagar. Eles começam a perseguir a onça. Cerca daqui, corre
dali, acua acolá, e a onça vai para lá, vem para cá. O Sr, firme como o pau na
mão, o dedo no gatilho. Quando mecê ouvir que a cachorrada fica no mesmo lugar,
é sinal que a onça trepou num pau. Vá
andando devagarzinho. Quando der com os olhos nela pare. Chame os cachorros e
os amarre longe dela.
_ Por que?
_ Porque já lhe digo. Por
melhor que seja o caçador, nunca mata a bicha com uma bala só. Ela cai no chão,
a desalmada, e a cachorrada vem em cima dela. E ela, zaz, zaz, e cada patada é
um cão destripado. Se mecê quer bem a seus cachorros amarre-os longe da bicha.
_ E depois?
_ Mecê procure uma árvore
jeitosa e trepe, mecê no toco cá, e ela no toco lá. A cachorrada uiva e late, e
a onça continua trepada. mecê não tenha pressa. Trepe na sua árvore de jeito que
veja bem a bicha na sua frente.
_ E mete fogo?
_ Não. Espere... espere...
Quando ela der as caras, mecê calca o gatilho e remete a carga.
_ Mas onde é que eu aponto?
_ Ali estão elas. Eu já lhe
digo. Se mecê quiser fazer um trabalho limpo, ouça bem, tem que atirar, ou no
pé do ouvido ou atrás da costela minguinha.
Chegamos ao Piquiri. Tínhamos passado
os 30 quilômetros de atoleiro no meio do mato. A perícia do motorista contornara
os buracos, vencera os galhardamente os obstáculos. Uma barranca íngreme. No
fundo corre majestoso, o rio. Uma balsa precária nos acolhe. Prendendo uma
grande chave de madeira ao cabo de aço, o balseiro impele a balsa pelo rio.
Vinte minutos e o motor arranca ribanceira acima. Mais uma hora, e um lençol de
prata de seis quilómetros se estende diante de nós: o Paraná Grande, antes de
se precipitar nas suas Sete Quedas.
_ Salve Maria!
_ Salve Maria!
Os dois homens beijaram-me o
anel e se foram. Nunca mais me esqueci da receita de matar onça.
'Quando ela der as caras, é
só atirar no pé do ouvido ou por trás da costela minguinha.'
Dom Geraldo de Proença Signaud S.V. D.
Bispo da Diocese de Jacarezinho (1947-1961)
Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese de Diamantina (1961-1980).
Fonte: Texto
publicado no jornal A Estrela Polar (setembro de 1961)
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